domingo, 9 de dezembro de 2012



Quando Ontem Chegar
          Altair de Oliveira


Este conto, escrito entre 1984 e 1985, era parte de um projeto de livro que deveria contar história dos nossos chamados “marginalizados” urbanos e rurais e que deveria chamar-se “Muquifo & Rebas, uma Sociedade Anônima!” O livro não chegou a ser concluído por inaptidão literária minha, dele apenas este conto e um outro que foi denominado de “Romeu & Julieta, uma Companhia Limitada” foram escritos e publicados, juntamente com alguns poemas, em meu segundo livro “Curtaversagem Ou Vice-Versos”, que foi publicado em 1988. Uma boa leitura! Para ver o meu blog: http://poetaaltairdeoliveira.blogspot.com.br/ - Altair.


Houve um tempo em que o cara queria ser famoso ou rico... Sei lá! Ele mesmo não sabia ao certo com era. Vontade de ter dinheiro, roupa boa, casa, coragem, alegria, amigos e etc.
Nesse tempo de adolescência ou infância ele tinha ainda mãe e irmã, ficava horas espremendo espinhas e achava que quando crescesse ficaria bonito, charmoso, sensual e tudo o mais que as pessoas apreciam. Certamente as mulheres iriam cortejá-lo e, destas, haveria uma que o acenderia quando se apagasse e o apagaria quando se acendesse. Essa ele amaria e protegeria para sempre. "Com os meninos faziam com as lamparinas, quando ainda tinha lamparinas..."
Foi mais ou menos neste tempo (a matemática do relógio o perturbava) que ele amou pela primeira e grande vez. Estudavam juntos, e ela, menina que era, tinha a urina solta. Era um problema hereditário, não sei ao certo, não podia emocionar-se, acontecia...
E na semana da pátria, a professora discursava das nossas belezas mil, escambau, do nosso povo gentil, coisa e tal, das riquezas inacabáveis, carnaval... E eis que um mapa de urina serpenteou pela sala. Então a garotada mangava dela, perguntavam se ela era furada, se o céu estava de chuva, muito mais... "O céu daquele tempo era embaixo das salas das meninas."  Ele não riu. Apaixonou-se. Ela acabou abandonado a sala, voltou somente um ano depois. Arrastada. Já então a paixão dele havia crescido. Namoravam de longe, olhavam-se. Ela sorria abaixando os olhos. Ele acanhava, e pensava que quando ela pensasse nele na certa urinava “esgorfiadinho”. Queria falar com ela e não tinha coragem. Um dia emprestou uns óculos escuros e piscou para ela, o coração quase explodiu-lhe o peito, mas ela não respondeu...  Então ele desapaixonou-se, mas depois apaixonou-se de novo.
À noite ele subia ao telhado para ver estrelas, conheceu todas elas e, destas, escolheu uma para representar a sua amada, a que ele chamava de "meu benzinho". Com a estrela é que ele ensaiava coisas bonitas que um dia iria dizer para ela.
Era uma estrela pequena, nem sempre aparecia. Quando ela não vinha ele chorava. Se ela demorasse para vir ele desapaixonava, ficava dias sem voltar ao telhado.
Num outro tempo, a mãe tinha morrido, a irmã casara, descasara, sumira. Porque a mulher que ele amava tinha perdido o rumo, ou não sei, ele mudou de cidade, cortou o cabelo e começou a vestir-se e a falar diferente. Decorou músicas em inglês e cantava mais ou menos assim: " I love you my live, because my life is you”, “Good bye..." e mais uma caixa delas.
Já então ele estava na cidade grande trabalhando de carregador, servente de pedreiro, jardineiro, cobrador de coletivo, porteiro, vigilante, zelador, gari, camelô e mais um monte de coisas que as pessoas fazem quando vão para as cidades grandes.
De quando em quando, batia a saudade e ele pensava " alguém mija por mim". Sentia então vontade de ir ao telhado namorar estrelas. Mas nesse tempo já não havia telhados e em céu enfumaçado não passeiam estrelas.  No espelho já não havia espinhas, e o rosto chupado sustinha uma barba rala, confundida no ruivo do grisalho ou vice-versa. Nos olhos a marca do sonho, do cansaço e do choro.
Fazia tempo que não chovia, e ele tinha certeza, "longe o tempo da última lágrima".
Um dia acordou bem. Cedinho e ele já estava em pé espiando a cidade acordar, dando bom dia ao dia, depois se achando bonito no espelho. Na rua, também a boa sensação de que a primavera tinha voltado, apesar de tudo. Percebeu que a mulher que ele amava perdera o rosto frente às mulheres da rua, das vitrines, das revistas, da TV, mas já não se importava tanto. No mundo da sua cabeça tocava no rádio (em português) uma canção que conjugava verbo ela-mija-por-mim em todos os tempos.
Entrou no coletivo apertado de todos os dias, e foi lá que ele viu a mulher grávida com uma criança no colo. Foi gentil. Segurou a criança, acomodou a mulher. Com a criança no colo fitou-a num ângulo de contemplação. No rosto usado de fêmea-urbana-proletária-prenha, garimpou e descobriu traços de uma alegria incerta, petrificada na mente, e ele não sabia, era ela.
No chão, ele devolve a criança e ela diz "Muito obrigado", coisa e tal. Emocionado, olha relógio pela primeira vez e a hora marcava quarenta anos.
E antes que ela partisse, falou: " Você ainda urina na cama?"
Quando ela voltou-se era viva e ria. E ele era todo aceso, e riso e são.
Pousou nesta sensação gostosa assim não se sabe a certo o quanto, instantes, séculos... Era bom!
Foi aí que enxergou um filminho que ele mesmo inventara : "Ela estava trajada de babá e a criança não era filho não, era instrumento de trabalho, e ela que levara uma vida sem emoção ficara sem urinar o tempo todo à sua espera e a barriga estava grande disso... Eles iriam passear  de mãos dadas pelas ruas, deixando um rastro de urina. As pessoas então diriam: Meu Deus! Com se amam! Que bonito!!! Que legal! Coisa e tal!  Aí, então, eles iriam para cama. E quando ela tivesse orgasmo haveria enchente e dilúvio. Cidade grande iria morrer e os dois ali, abraçados... Esgoto voltaria a ser rio e os dois ali, abraçados... Ressureição de Sete-quedas e os dois ali, abraçados... Poderiam se fundir, morrer, ir para algum buraco de céu virar estrela, se quisessem... Nas não fizeram nada disso não!"
No filme da cabeça dele os dois ficariam ali abraçados até que tudo voltasse a ser como antes, até que a tempestade passasse...
Como devia ter sido.

   ***

Texto de  Altair de Oliveira, In: “Curtaversagem ou Vice-Versos”, edição do autor – 1988.
Ilustrações: trabalhos da pintora “ Vitória Basaia”.